quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Quase Ladrões de Natal

     Quase Ladrões de Natal


     Sob o manto negro da noite, começa mais uma madrugada nesta maravilhosa Cidade Grande, como sempre o cenário é ridículo, triste e desesperançado para o nosso amigo José... vindo de outra região muito pobre e esquecida pelos governantes do País, largando sua miserável terra natal, família e amigos, veio atrás de um sonho, de uma outra cidade onde pudesse trabalhar... trabalhar muito para dar uma vida digna para seus familiares. E assim, durante algum tempo tentou, buscou, e embora fosse um ótimo profissional da construção civil (pedreiro), já nem fazia questão de escolher qual trabalho fazer, aceitava qualquer um, mesmo assim todas as portas pareciam se fechar para ele, todo e qualquer trocado que conseguia gastava únicamente para sobreviver (tudo era muito caro nessa nova cidade).

     Pois bem, pela madrugada morna caminhava José, estava decidido, começaria cedo, procuraria sem parar por uns biscates (qualquer coisa estava boa), se não encontrasse nada, iria mendigar pelo centro da cidade, “talvez alguém ajude” pensava, caminha nosso José, solitário, triste, seu sonho agora era tão somente voltar, mesmo que derrotado, mas voltar para sua gente, para sua casa, para sua terra adorável (só agora ele percebia o quanto). Madrugada longa... o morador de ruas José seguia, pelas ruas e becos, olhava aquele cenário desolador, eram mendigos jogados sob os bancos nas calçadas, uns bêbados em confusão brigando por uma garrafa de pinga barata (que encontraram no lixo numa rua atrás de um bar), loucos a urrar no silêncio da madrugada se dizendo Napoleão (O Imperador do Mundo), sem falar nas mulheres da noite (verdadeiras caricaturas, com suas carrancas ridículas, que vendiam sexo por qualquer centavo e a qualquer drogado que ainda as aceitasse). Enfim, toda uma corja de depravados que ajudavam a enfeiar ainda mais as madrugadas da Grande cidade.

     Pensando ia José “Vou voltar para o meu lar”. Triste, resmungava só “Isto aqui não é o meu mundo. Acho até que voltando pra casa, vou virar escritor e escrever um livro sobre a Cidade Grande... isso mesmo, na paz de meu lar vou escrever e ser reconhecido, afinal eu sempre gostei de letras!”. Embora fraco, faminto e apenas com uns poucos centavos (que guardava como um tesouro), José atravessava valentemente a madrugada, agora ansioso em conseguir partir daquela cidade o mais rápido possível.

     Subitamente, em uma rua abafada, José cai sem vida, seu coração não aguentou a esperança de ser alguém e parou, enfraquecido que estava pelas tristezas e derrotas da sua humilde existência). Apenas mais uma carcaça humana abandonada no meio de um beco escuro... surgindo do meio do nada aproxima-se um desgraçado imundo, revira os bolsos do defunto José, encontra e rouba uns centavos e sua documentação, afasta-se rapidamente do local, sendo logo abordado por uma prostituta nojenta que presenciou a cena e começa a oferecer seus serviços ao mendigo, foram os dois beco afora acompanhados por suas miseráveis, escandalosas e incessantes gargalhadas infelizes...

     O dia começou a amanhecer, as pessoas passavam apressadamente e nem se davam conta (ou fingiam não dar) de que aquele obstáculo no meio da calçada era um pobre morto, apenas se desviavam reclamando do incômodo no trajeto. Já pelo meio da manhã, continuava lá, jogado e esquecido o corpo de José, os transeuntes passavam, apenas alguns olhavam de lado, mesmo assim, só expressavam desprezo e deboche e comentavam: Menos um vagabundo no mundo... Um casal de afetados e engravatados executivos, aproxima-se e numa atitude de nojo joga sobre o rosto de José, um jornal, e saem os dois em passos apressados e saltitantes dizendo: Nossa que cara feia!

     Então nosso José era apenas um morto desconhecido, com o rosto coberto pelo jornal do dia, onde se lia na primeira página “Madrugada de orgia num Palácio de um Planalto, onde políticos, grandes empresários e suas acompanhantes de luxo (esqueléticas, com suas carrancas plastificadas e seus corpos turbinados), festejaram durante toda a noite mais um grande acordo entre eles, com direito até a um pronunciamento do deputado mais votado pelo povo. Que em um momento do discurso disse sob os aplausos de todos os presentes “O Mundo precisa aprender a valorizar mais os homens e as mulheres como estes que estão aqui presentes, bem como deve aprender a se livrar do lixo social... lugar de pobre é na lixeira!" disse erguendo um brinde em sua taça de Cristal Bacará com Champanhe Francesa.

     Lá no beco, apontando para o defunto José, alguém grita: Ninguém vai tirar essa porcaria daqui não????...

     Surgindo como das profundezas do inferno, aparece uma horrível pá mecânica, operada por um enraivecido sujeito que avança em direção ao cadáver do José. Seu corpo é violentamente sacudido...

     Ouve-se gritos femininos:

     - Paiiiii... acorda, você tem que terminar ainda hoje esta estória! Pára de cochilar em cima do teclado do computador!

     José de pronto desperta e se dá conta de que tudo não havia passado de um pesadelo, afinal, ele havia conseguido retornar à sua Terra, ao seu Lar e se tornado um talentoso e reconhecido escritor. Assim, despertado por suas filhas, que lhe trouxeram uma estimulante xícara de café quentinho, na paz de seu escritório doméstico, aliviado, resolveu José finalizar seu conto com um brinde ao Amor e às Artes, pois amanhã será o Dia de Natal.


     Autor: Paulo Renato Lettiere Corrêa (Paulo Lettiere)

Nenhum comentário:

Postar um comentário