quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A Viagem dos Sonhos

     A Viagem dos Sonhos


     Como eu costumo fazer sempre durante as minhas férias de meio de ano, decidi viajar pelo interior do país. No ano passado escolhi um estado da região sudeste conhecido por sua bela natureza, sua gente acolhedora e sua culinária maravilhosa. Pronto! Fiz a minha mala de viagem e animado parti. O dia estava lindo, convidativo mesmo para viajar. Não demorou muito e cheguei ao terminal rodoviário. Desembarquei meio que sem saber qual destino escolheria... Vagando pelos guichês, olhando nomes das cidades, vendo as pessoas e até mesmo os ônibus (na esperança que isto me ajudasse a tomar uma decisão), de súbito me deparei com uma dessas conduções que me chamou a atenção. Era um ônibus pequeno, antigo, parecia um sobrevivente da segunda guerra. Mas ali estava ele, presente, em aceitável conservação, orgulhoso e valente. Entre tantos outros maiores, mais modernos e arrogantes ali estava ele, empoeirado sim, mas, via conservada sua pintura. Era todo amarelo, com o nome da cidade de destino escrito em uma plaquinha  acima do para-brisa (Sereno, A Cidade Do Sereno).

     Decidi! É pra lá que eu vou! Simples que era, as passagens eram vendidas pelo próprio motorista antes de entrar na condução. Era ele um sujeito rústico, fortinho e meio atarracado, mas que se esforçava para ser gentil. As pessoas compravam seus bilhetes e iam se acomodando da melhor forma na condução. Enfim chegou minha vez. Perguntei ao motorista qual seria a duração da viagem e ele me respondeu:

     - Se tudo correr bem, se o possante aí não bufar... umas três horas.

     Pensei comigo mesmo: "Vamos nessa!"

     Entrei. Quase todos os lugares já estavam ocupados. Consegui encontrar uma poltrona vaga ao lado de uma jovem, pedi licença e me sentei. Ela me olhou e perguntou se eu queria sentar do lado da janela. Eu respondi que não era necessário e agradeci, então ela disse:

     - Eu gosto de viajar perto da janela, pra se eu passar mal...

     Sinalizei que entendi com um incrível sorriso amarelo. Minha atenção se voltou para porta de entrada do ônibus, lá acontecia uma discussão entre o motorista e alguns passageiros que queriam embarcar na condução já sem lugares vagos. O tal condutor resolveu acabar com tal discussão com uma justificativa que me gelou até os ossos... Falou ele:

     - Em minha condução, ninguém viaja em pé. Assim, no caso de uma capotagem ou de uma batida forte, ninguém quebra a cara ou morre.

     Ele entrou, assumiu irritado o comando do seu possante e partimos enfim sob o som confortante dos sinos de uma igrejinha  próxima que avisava as doze horas. Olhei à minha volta e percebi que o tal ônibus não tinha porta-malas, toda e qualquer bagagem ia ali mesmo junto com seus donos, disputando os espaços. Voltei para minha vizinha de poltrona e vendo que ela era uma moradora  da localidade perguntei se aquele ônibus era sempre assim, tão apertado. Para meu espanto ela respondeu:

     - Sempre que eu pego barriga fica assim, cheia de gente.

     Sua resposta me atingiu como um direto de um pugilista no estômago. Resolvi manter minha boca fechada o maior tempo possível durante a viagem. Felizmente, o motorista agora parecia mais calmo e concentrado, afinal, estávamos em uma grande rodovia e o possante roncava firme e determinado.

     Já havíamos percorrido bons quilômetros da rodovia quando reduzindo a velocidade entramos numa estrada secundária. Era uma estrada de chão, toda esburacada e com uma poeira vermelha de sufocar. Para piorar a coisa, estava um calor insuportável. O ônibus se sacudia todo fazendo uma barulheira terrível. Um dos passageiros reclamou, dizendo:

     - Que coisa, esta estrada não melhora, se faz sol fica assim pueril, se chove fica um horror de lamentosa.

     E desabafou:

     - Também... Quem manda nós ser burro e acreditar em promessa de políticos neste país.

     A viagem continuava. A estrada serpenteava por meio de grandes pastagens estorricadas pela estiagem que castigava o lugar. Capinzais cinzas e gado esquelético, urubus ansiosos, um céu azul de doer os olhos e rios de pedra (nunca de água) era o cenário desolador que se repetia por quilômetros e quilômetros  interrompido apenas por poucos casebres brancos com janelas e portas pintadas de azul, como de insistissem em afirmar: "Aqui ainda tem ou já teve vida".

     De repente me dei conta que já tinha algum tempo que minha vizinha ao lado vinha quieta, olhando fixamente pela janela e comendo de forma compulsiva uns biscoitos de polvilho de cor amarelo forte que estavam num saquinho de celofane onde se lia no rótulo: Biscoito do Sol. Pareciam bem secos e salgados. Para se defender dos biscoitos ela bebia sofregamente a água pra lá de quente de uma garrafinha plástica que levava no rótulo um criativo nome: Águas das Bicas. Ela percebeu que eu olhava para a garrafa, virou-se para mim e com uma voz insegura e desafinada, trêmula mesmo (não sei se por causa dos biscoitos, do saculejar do ônibus ou se por medo de que eu aceitasse) agitou o biscoito e a garrafa em minha direção e perguntou:

     - Queeeriiiiaaaaa?

     Assustado, agradeci mas não aceitei (não quis me arriscar). Já estávamos no meio da tarde, agora o cenário, o clima e estrada começavam a melhorar. Havia mais vida em tudo, já se sentia sinais de umidade no ar, os sítios já eram alegres, os rios cantarolantes, as vaquinhas leiteiras das propriedades eram gordinhas e espertas. Eu, que estava com o corpo todo estropiado pelos buracos da estrada, agora começava a relaxar e sentir uma sonolência com aquela brisa fresquinha. Já havia passado algum tempo nesta paz, quando, quase num salto, a moça ao meu lado levanta-se gritando agitada:

     - Condutor, por favor... Pare a barriga aí pertim da curva do Seguraí, que eu vou descer.

     Só então que eu fui entender a tal barriga que ela falou... Se tratava do apelido que deram ao ônibus, por causa de suas formas redondas e por estar sempre cheio de gente. Nossa amiga desceu do ônibus e enquanto a nossa condução partia, levantando uma nuvem de poeira, ela ficou ali, à beira da estrada, solitária, acenando gentilmente para os que seguiam viagem. Ela era um tanto estabanada, mas, simpática. Vi quando ela se dirigiu a uma trilha que deveria levar à sua moradia. Desejei: "Seja feliz jovem amiga!"

     Esta cena me levou por bons minutos de forma saudosista à minha infância no interior: "Passageiro de meio de caminho, uma trilha no meio do Mundo, um coração simples e feliz, sonhos e realidades... Com certeza esta foi a base que me faz hoje um Espírito feliz e uma pessoa bem sucedida". Fui sem dó nem piedade arrancado de meus pensamentos saudosistas pela voz irritada do tal motorista, que gritava enquanto se retirava do seu lugar:

     - O possante bufou! Vai ter que beber água.

     Só então me dei conta de que havíamos parado à beira da estrada, perto de uma generosa moita de bambus. Resolvemos descer para esticar um pouco nossos corpos maltratados pela viagem. Apesar do clima já ter ficado bem mais agradável, dentro do ônibus ainda tinha um ar morno e saturado. Eu, esperto que sou, vi quando o condutor foi para algum lugar com umas latas na mão, fui atrás e descobri ele enchendo as latas com a água de uma farta biquinha de bambu. Me aproximei quando ele terminou de encher as latas para dar de beber ao seu bufante e sofregamente tomei umas boas goladas daquela água. Estava meio morna mas serviu para acalmar a sede. Agradecido, olhei para a tal farta biquinha de bambu, agora via que tinha uma plaquinha de madeirite pregada acima dela onde se lia: "Água Imprópria Para o Consumo Humano".

     O motorista, que havia ficado ao meu lado, parado, espantado com minha sede, quando viu meu desespero ao ler a placa, tentou me acalmar, dizendo:

     - Até eu quando estou morrendo de sede bebo desta água. Faz mal não... Às vezes aparecem umas feridinhas mal cheirosas na cara... Dura só umas duas semanas, depois somem.

     Mergulhado em silêncio, quando percebi, já estávamos novamente rodando na estrada naquela condução comandada por aquele indivíduo tão gentil. Alguns quilômetros adiante, o cenário era totalmente diferente do início desta viagem, tinha matas frescas e verdes e o sereno tomava conta do lugar e já fazia um frio repousante. Atravessamos uma enorme ponte de madeira sobre um encachoeirado e ruidoso rio de águas cristalinas. Após uma subidinha encravada em meio a um lindo vale, lá estava ela, parecendo acariciada pelas nuvens, a nossa bela, simples e acolhedora cidadezinha de Sereno. A boca da noite já tentava engolir o que restava deste dia, mas, de forma alguma entristecia o lugarejo. O ônibus orgulhoso descia agora por uma alameda tortuosa. A iluminação avermelhada dos postes da cidade ganhava um dourado alegre ao tocar a nuvem de sereno que predominava no lugar.

     Enfim, após rodarmos por umas ruas, chegamos a uma praça de forma irregular onde paramos à beira da calçada. Tinha uma mini cobertura de ponto de ônibus que eles chamavam de rodoviária. Desembarcamos. Estava ansioso para conhecer o lugar e apreensivo sobre onde conseguir uma pousada ou um hotel para me instalar. Pensei em pedir informação ao motorista, mas este já foi dizendo que não poderia me dar atenção, pois teria que correr para o mictório. Olhei em volta, uma praça simples e simpática, um coreto rústico e bem cuidado, ruelas em torno, uma igrejinha arrogante, uma padaria convidativa, apenas uma agência de Banco (felizmente eu tinha conta nele), umas dezenas de casas e uns poucos moradores que passavam apressados.

     Resolvi então ir à padaria para me informar de um bom lugar para ficar. Ao entrar vi que funcionava ali também um animado barzinho. De mansinho perguntei ao rapaz do balcão sobre um bom lugar para passar a noite. Ele fez uma cara maliciosa e piscando o olho direito (querendo demonstrar esperteza) me respondeu:

     - O melhor lugar para se passar noite nesta cidade é na rua aqui atrás... Na Casa das Moças.

     Saí do tal estabelecimento com a sensação de estar falando outro idioma. Foi quando passou na minha frente um indivíduo baixinho, apressado, enfiado numa farda policial azul com enormes botões dourados. Alcancei o sujeito e perguntei sobre hotéis, pousadas ou hospedarias, ele, sem parar sua correria, me respondeu em um carregado sotaque francês algo que eu entendi assim:

     - Eu estou com muita pressa... Vou fazer uma coisa que só eu posso fazer e vai ser um alívio quando eu fizer.

     E afastou-se rapidamente, me apontando a direção de uma rua, na qual tinha uma placa indicando "Pousada da Vó Nirma". Eu vi quando o tal policial se dirigiu para a rua atrás da padaria e pensei: "Elas vão fazer picadinho deste baixinho". Este sujeito me lembrou algum personagem da História... Só não conseguia definir com clareza, qual. Estava empenhado naquele momento, em encontrar logo um lugar para me instalar. Segui pela rua indicada, andei uns bons metros e encontrei um longo muro que ostentava uma bela grade de ferro que protegia um lindo e imenso jardim gramado, que tinha ao fundo um suntuoso casarão (tudo muito bem cuidado e com uma iluminação discreta mas muito eficiente). Me dirigi ao portão da entrada, era de ferro, artisticamente forjado, de desenho impressionante, forte e protetor. Ao alto e no centro deste, um brasão imponente e belo (daqueles que parecem ter o esplendor da família a qual pertence).

     Parado (Ou seria paralisado?) diante de tamanho bom gosto, tomei coragem para tocar a campainha. Veio me receber um casal formado por uma senhora (um amor de pessoa) e um jovem atlético e de educação refinada. Fomos em silêncio para o casarão. Adentramos a um enorme salão. Olhei com atenção o assoalho de tábua corrida, as paredes altas e brancas, assim como o teto, que mostrava um imenso e inamaginável lustre (que mais parecia uma cascata de belos cristais) descendo de seu teto. Existia também todo um mobiliário com belíssimas cortinas e ao centro deste rico ambiente um orgulhoso piano de cauda em mogno.

     Eu estava como que hipnotizado com tudo que via ali quando a bondosa senhora virou-se dizendo:

     - Vejo que você está precisando de um bom descanso. Depois de descansado lhe mostrarei todas as dependências.

     Sorrindo, pediu ao seu assistente que me levasse aos meus aposentos. Era uma suíte. O rapaz acomodou minha mala e se despediu gentilmente. Fiquei ali alguns instantes, imaginando aquela pousada, sua proprietária, seus funcionários... Subitamente, pensei sobre quanto seria uma diária num lugar assim, deveria ser carinha (na minha necessidade de encontrar abrigo, nem me lembrei de perguntar isto)... Bem deixa isto pra lá. Resolvi tomar um bom banho. Assim fiz. Já estava no conforto de meu pijama quando alguém bateu à porta. Atendi. Era o serviço de copa com uma deliciosa refeição. Não pude resistir. Após apreciar aquela nutritiva refeição, me recostei na cama e envolto num gostoso cobertor fiquei durante um bom tempo com a mente vazia, sem pensar em nada, apenas curtindo o momento. Então tentei buscar o sono, ele não veio, insisti, e embora estivesse um pouco cansado da viagem, não conseguia adormecer... Foi quando ouvi uma canção de ninar. Prestei atenção e percebi que vinha do piano lá na sala. Reconheci ser a canção de ninar composta e cantada apenas pelos meus familiares (Era uma declaração de afeto e carinho entre nós). Tentei levantar e não consegui, adormeci em profundo sono.

     Na manhã seguinte estava totalmente recuperado em minhas forças. Enquanto me encaminhava para o refeitório, pensava: "Vou esclarecer com aquela senhora quem estava a tocar piano na noite passada". Determinado seguia quando aparece à minha frente, ela, delicada, serena, dona de uma gentileza desconcertante... Me tomou pelo braço e me levou até uma das mesas. Me acomodou e sentou a meu lado dizendo enquanto sorria:

     - Que o Bem, a Paz e a Luz continuem sempre em seu Coração.

     Pediu-me licença e se retirou com a delicadeza de costume. Diante de tudo isto a minha determinação para perguntas caiu no silêncio, concentrei-me apenas naquele bem montado café da manhã (Estava simplesmente maravilhoso). Enquanto eu apreciava o café, pensava: "Quem era aquela senhora que me tratava como se me conhecesse a muito tempo?"

     Ela tratava os outros hóspedes com educação e carinho mas pra mim eu percebia que ela enviava uma energia ainda mais do Bem...

     Decidi então que após o café daria uns passeios pela cidade para me distrair... Conhecer melhor o lugar e aproveitaria também para investigar sobre aquela pousada e a sua misteriosa proprietária. Já estava saindo da mesa quando Vó Nirma se aproximou de mim sorrindo e disse:

     - A manhã está linda! Aproveite para dar uns passeios, conhecer melhor o lugar, as pessoas daqui, enfim, matar a curiosidade. Mas, se puder volte antes do almoço para ver nossa cozinha em ação. Sei que você é um chef de cozinha respeitado. Vais gostar de nos acompanhar.

     Espantado, confirmei que voltaria a tempo (Fiquei intrigado, como ela soube que eu era um chef... Eu nunca informava isto onde me hospedava, para não parecer prepotente). Caminhei um pouco pelo jardim e ao passar pelo portão, olhei para o tal brasão... Uma alegria incompreensível invadiu minha alma, me proporcionando uma clara certeza que aquela pousada e suas pessoas estavam ali a serviço do Bem.

     Caminhando em direção ao centro da cidadezinha (agora à luz da manhã) percebia que tudo ali era a mais perfeita visão dos lugarejos do interior. As ruas, as casas, as pessoas, a tal praça com seu coreto e sua igrejinha, um comércio que dividia os espaços. Era tudo simples mas bem cuidado. Tudo isto vivia em função das imensas fazendas que se avizinhavam do lugar. Chegando à praça, avistei um senhor sentado em um dos banquinhos. Estava ele observando os pombos em um gramado perto dele. Me aproximei, puxei uma conversa sobre o dia lindo que fazia... Ele concordou gentilmente... Sentei ao seu lado. Começamos uma conversa animada, sobre o dia, sobre as fazendas, enfim, eu queria mesmo era obter informações sobre a pousada onde estava instalado. Por isto, em um momento de nossa prosa, como quem não quer nada, perguntei sobre a pousada. Ele respondeu em tom sereno e desinteressado:

     - Haaammmm... a Pousada da Vó Nirma, um bom lugar.

     A seguir, pediu licença, se despediu e partiu cantarolando uma musiquinha desconhecida. Confesso que me senti ridículo na minha primeira tentativa de investigação. Saí meio que sem graça, caminhando pela praça repleta de mesinhas de azulejos decorados e cercadas de blocos de pedra que serviam de cadeiras. Havia um grupo de pessoas conversando. Pensei: "Vou me enturmar. Quem sabe se ali não consigo as informações que desejo?" Quando me aproximava do grupo, ouvi o que falavam, comentavam orgulhosos, que no anoitecer do dia anterior (Foi quando eu desembarquei na cidade), o baixinho mas valente policial Leon, agiu rápido e salvou um garotinho que ficou preso quando brincava em um estreito porão da casa em que morava... Tal casa fica ali, logo depois da Casa das Moças, na rua atrás da padaria. Comentavam ainda que se Leon não fosse baixotinho não seria possível salvar o menino.

     Envergonhado de meu julgamento sobre aquele baixinho apressado, me afastei. Resolvi voltar à pousada, afinal, tinha um trato com Vó Nirma. No meio do caminho de volta tinha um sujeito aparando a cerca viva de sua casa... Resolvi arriscar mais uma vez... Elogiei sua casa, ele sorriu e disse que não era dele, apenas estava tentanto arranjar uns trocados para almoçar. Pensei: "Comecei bem! Eu e as minhas mancadas!". Insisti e subitamente falei sobre a pousada. Comentei que era uma bela propriedade... Parou de podar por um instante, virou para mim calmamente, tirou o cigarro de palha da boca, deu uma carregada cusparada (que quase acertou meu pé) e concordou:

     - Hê Hê.

     Ele novamente colocou o cigarro no canto da boca, deu uma ajeitada no chapéu e com seu facão imenso voltou a se concentrar em seu trabalho encerrando a conversa. Eu saí de fininho, buscando chegar logo à pousada. Ao chegar, Vó Nirma estava sentada em uma confortável cadeira colocada na varanda. Levantou e veio ao meu encontro. Comentou que eu havia retornado bem a tempo de ver seus funcionários de cozinha em atividade. Mais uma vez eu pensei: "De repente é aqui mesmo o melhor lugar para minhas investigações".

     Chegamos à cozinha. Era um grande espaço, bem organizado e com um eficiente sistema de ventilação, exaustores e iluminação que deixavam o lugar em uma harmonia impecável. Todos ali eram de uma competência e educação irretocáveis, dando provas do amor pelo que criavam ali (Pratos simples ou sofisticados). Sempre visavam agradar a todos. Fiquei ali bons momentos, parado, observando tudo e todos, surpreso com a desenvoltura de Vó Nirma... Ela supervisionava e com carinho orientava os seus funcionários com suas doces palavras, seus elegantes gestos, segura e simpática como sempre. Em um determinado momento, ela veio em minha direção e disse:

     - Para você pedi que preparassem o que você mais gosta... Uma boa carne assada ao molho madeira com arroz branco e uma saladinha de folhas verdes.

     Ela voltou serena, a acompanhar seus funcionários. Eu fiquei ali, imóvel, com meus pensamentos e palavras silenciosas... Tentando entender o que significava tudo isto. Perguntava a mim mesmo como Vó Nirma sabia tantas coisas sobre mim... Por que me olhava e tratava como se já me conhecesse a muito tempo? E a mais angustiante de todas as minhas dúvidas: Por que eu não ousava indagar, questionar mesmo, esta incrível e respeitável senhora sobre ela, sobre nós? Enfim, perto dela era tudo tão natural, tão harmonioso, que minhas perguntas calavam.

     Assim, ali naquele cantinho daquela bela cozinha, decidi, por tudo que haviam me oferecido, por tudo que havia vivido naquele lugarejo e naquela pousada, e, principalmente, pela adorável Vó Nirma... A partir daquele momento jamais eu tentaria questionar e investigar nada sobre aquele lugar, sobre aquela pousada ou sobre a bondosa Vó Nirma. Apenas, agora, iria apreciar tudo e agradecer ao destino que me trouxe até aqui.

     Fui despertado de meus pensamentos e promessas pela doce voz de Vó Nirma que sorridente dizia:

     - Venha meu neto! Agora, sem dúvidas, você vai amar nosso almoço.

     Fomos para a sala refeitório e o almoço foi servido... De fato o meu estava impecável em tudo... Adorei! Fui até a recepção e comuniquei que partiria naquela tarde (Uma dolorosa decisão. Não queria correr o risco de quebrar minha promessa quanto as investigações). Voltando aos meus aposentos, resolvi arrumar minhas malas para a partida. Assim fiz. Olhei ao redor para certificar que não havia esquecido nada. Nada havia esquecido (Não queria esquecer, nem mesmo as lembranças deste lugar maravilhoso). Acompanhado por meus pensamentos, lembranças, saudade e malas, cheguei à recepção. Estava fechando as contas quando veio até nós Vó Nirma, como sempre sorridente, segura, dizendo:

     - Então vai partir... Espero que tenha gostado do tempo que passou conosco. Nós adoramos você!

     Falei o quanto gostei dos dois dias vividos com todos ali. O rapaz da recepção entregou-me um recibo das contas muito bem detalhado... Data de chegada, despesas, saída, etc... Vó Nirma fez questão de assinar tal recibo (Uma bela rúbrica, que me parecia familiar). Ela me tomou delicadamente pelo braço e nos retiramos dali. Seguimos vagarosamente através do farto jardim. Com elogios às flores disfarçamos a melancolia daquele momento da partida. Ao pé do portão paramos, olhando um para o outro com um carinho inexplicável. De repente ela estendeu sua mão direita me oferecendo uma folhinha dobrada de papel cor de rosa, me dizendo:

     - Tome, leve e leia com carinho. Tenho certeza que você vai gostar.

     Recebi o papelzinho, guardei no bolso de minha mala, agradeci por tudo ali, e, principalmente por ela existir. Ela deu-me um beijo no rosto (tenho certeza... nunca vou me esquecer do carinho intenso naquele beijo) que procurei retribuir. Buscando forças, parti com a certeza de que fazia o certo (Algo me garantia que sim). Já na rua arrisquei voltar o olhar em direção ao portão, ela continuava lá, parada, tranquila, com a clara expressão de "Vá em Paz... Foi muito bom te ver de novo".

     Apressado, segui pela ruazinha pavimentada com pedrinhas rústicas. Levava comigo uma mochila nas costas e em cada mão arrastava uma dessas malas com rodinhas que não pararam de saculejar nas calçadas irregulares dali. Enfim cruzei a praça local e cheguei ao ponto de ônibus, lá estavam o possante, seu motorista agitado (era aquele mesmo que me trouxe) e um arremedo de fila de passageiros e suas tralhas se empurrando. Entrei na fila e no clima de empurra-empurra. O gentil motorista, já foi mostrando serviço, dizendo:

     - Parem com esta balbúrdia! Senão eu não vendo passagem pra ninguém. Meu ônibus não é curral.

     Funcionou... Os ânimos se acalmaram. Logo eu estava dentro do ônibus e descobri uma poltrona vaga. "Que sorte a minha!" pensei. Desta vez iria perto da janela. Acomodei minhas malas do melhor jeito e não demorou a sentar ao meu lado o meu vizinho de viagem... Era um gordinho suado, que tinha em suas mãos uma latinha de cerveja e uma  sacolinha de papel com gordurosos torresmos. O sujeito, espalhado, mal cabia em sua poltrona e não tinha noção de espaço. Pensei com meus botões "Esta viagem promete". Olhei pela janela. Via que lá fora a fila era um amontoado de pessoas confusas que o pobre motorista já não conseguia organizar. De repente ouvimos um apito ensurdecedor... Era o  guarda Leon chegando. Veio promover a ordem, como ele próprio berrava entre um apito e outro. Os passageiros reclamavam que alguém havia furado a fila... O motorista alegava não ter visto nada... Leon como se estivesse possuído por um espírito estrategista tentava acalmar aquele povo dizendo que todos estavam certos, que todos tem direito à igualdade, à fraternidade e à liberdade... Mas que isto só se tornaria uma realidade depois que o mundo vivesse uma grande revolução que abalasse os alicerces dos poderosos. Ouvindo isto, como que por encanto, tudo por ali foi tranquilizando. As pessoas com suas passagens compradas, embarcaram, e as que não conseguiram comprar passagens, foram se dispersando. Foi quando como surgida do nada, uma mulher apareceu aos gritos, reclamando que muitos homens da vila iam vagabundar na cidade grande... Que ela precisava pegar barriga e que ninguém queria ajudar. Ela fazia um tal berreiro na calçada junto ao ônibus, que, meio inconsciente, comentei com meu vizinho de poltrona:

     - Meu Deus... Será que nenhum cavalheiro gentil vai oferecer o lugar para que esta desesperada senhora possa viajar?

     Ele, com negligência, me respondeu:

     - Logo se vê que o moço não é dessas bandas. Essa aí não quer viajar não. Essa é Sofia, filha de Dona Conceição. Ela é descontrolada dos nervos e agora cismou que quer embuchar, pegar barriga... Engravidar... Entendeu?

     Fiz cara de que entendi e pensei comigo mesmo: "Mais uma de minhas mancadas... Vou fechar a boca que é melhor!". Enfim partimos. Rodamos por ruazinhas do lugar... As casas eram simples, de cores fortes e sem apego às regras da arquitetura urbana... Apenas seguiam a personalidade de seus moradores, que tinham o costume de ficarem nas janelas de suas casas acenando para as conduções desejando uma boa viagem, marcando em meu coração a saudade do lugar.

     Atravessamos agora pela ponte de madeira sobre o rio agitado e seguimos pela estrada tortuosa em meio à deliciosa mata da região. O sereno e o ar puro tornavam aquele momento de despedida mais calmo e agradável. O possante seguia firme e determinado. Alguns passageiros conversavam baixinho, outros dormiam, o gordinho ao meu lado seguia meio que em transe, olhando fixo para sua latinha de cerveja e conferia se ainda restava algum torresmo em sua sacolinha de papel já vazia.

     Saindo do sereno e do frescor da mata, entramos agora no tormento daquela estrada de chão toda esburacada. A poeira era vermelha e sufocante, os trancos e saculejos torturavam nossos esqueletos e foi aí que eu descobri a razão da sorte ter me reservado esta poltrona... Era bem em cima da roda traseira... O que me garantia trancos mais fortes e também havia o privilégio de aproveitar todo aquele cheirinho de lona de freio velha queimando. A cada freada brusca do possante eu reclamava baixinho:

     - Droga...

     Mas tentei me conformar pensando que quem está na chuva tem que se molhar (eu nem imaginava como iria me arrepender deste pensamento).

     Já estávamos na agonia desta estrada à boas horas. A paisagem se repetia sempre, poeira vermelha, grandes pastagens esturricadas pelo Sol implacável, gado na pele e osso, casebres e moradores em busca de se manterem vivos. Estava muito quente quando passamos por uma plaquinha de madeira à beira da estrada onde pude ler "Trevo de Cegonhas a cem metros". Imediatamente nossa condução reduziu a velocidade. Nos aproximamos do tal trevo de acesso. Na verdade era apenas uma encruzilhada com uma cobertura pequena e precária com um banquinho de madeira... Enfim, um ponto de ônibus no meio do nada. Nele estavam três pessoas. Eram duas jovens sentadas e um senhor em pé à beira da estrada. As jovens, ao verem o ônibus, começaram a gritar para o senhor à beira da estrada, em coro e com suas vozes fanhas e desesperadas:

     - É o nosso ônibus! Grita, pai... Grita!

     O senhor, meio que desorientado, todo agitado, começou a sinalizar e gritar. Porém, as duas, ao perceberem que não era o ônibus que desejavam, em coro, desesperadas e fanhas gritavam:

     - Não grita não, pai... Grita mais não... Não é ele não.

     Alguns passageiros comentaram o ocorrido dizendo:

     - Que trio estranho. Deve ser uma família de malucos. Ainda bem que não paramos.

     E a viagem seguia. Agora umas imensas e pesadas nuvens negras cobriam o céu. Alguém disse "Se o calor continuar, vamos beber água do céu". De fato, alguns quilômetros à frente começou uma chuva fininha que logo virou dilúvio. E o meu pensamento, aquele de estar na chuva, virou realidade... pois eu descobri também que a minha janela não tinha vidro para fechar... E aquela poeira vermelha acumulada em meu rosto virou uma lama fina a escorrer pelo meu peito com a chuva que insistia em me castigar.

     Ainda tinha aquele gordinho, suado e espaçoso que agora teimava em cochilar recostado em meu ombro... Estava babando, roncando e com um horrível bafo de cerveja. Dele eu conseguia me livrar por alguns momentos dando-lhe delicadas cotoveladas em seu flanco (pior que era insistente o tal glutão). Chovia muito e o calor não passava... Assim nossa viagem continuava. De súbito, uma cria de uma das passageiras resolveu enriquecer a trilha sonora da viagem com seu choro agudo, ensurdecedor, angustiante e infindável, o que provocou a ira de um dos passageiros, que gritou:

     - Dá a teta pra este bezerro parar de berrar.

     De nada adiantou. Olhei e vi aquela mulher carinhosa que apenas se limitava a chacoalhar nervosamente a criança como se fosse um boneco enguiçado. Veio-me um pensamento melancólico:

     - Meu Deus! Por que?

     Consultei o meu relógio tentando ver quanto tempo restava de viagem. Fiquei animado, faltava só pouco mais que uma hora, a chuva começava a diminuir e o clima já era bem mais agradável. Soprava uma brisa fresquinha e milagrosamente aquela choradeira cessou. Agora começamos a rodar na estrada asfaltada e o nosso gordinho resolveu ficar acordado... Enfim era um paraíso.

     Quando percebi, já estávamos circulando pelas ruas da cidade em busca de nossa rodoviária de destino e alguns passageiros mais afoitos já se preparavam para desembarcar. Finalmente entramos no terminal rodoviário. Todos desceram do ônibus. Eu, com minha bagagem, também desci. Fui até o motorista ao lado da condução para agradecer e me despedir. Ele olhou-me e foi logo dizendo com a calma habitual:

     - Agora não posso falar, seu moço... Tenho que correr pro mictório.

     Considerei aquilo uma sincera despedida. Cansado, com dores por todo corpo, agradeci por estar vivo. Fui em busca de um ponto de táxi, cheguei até um deles, e, antes mesmo que eu falasse qualquer coisa ele foi logo dizendo:

     - Não, aqui não. Eu não carrego feridos, pode me dar problemas com a polícia... Vai que o senhor morre no meu táxi... Aí é que a coisa fica feia.

     Sem entender direito o que o infeliz dizia, percebi que ele olhava horrorizado para meu peito. Olhei e vi surpreso uma enorme mancha vermelha que se formara com a chuva e a poeira em minha camisa branca. Entendi tudo... Comecei a rir e expliquei o que era aquela mancha. Ele, tranquilizado, eu envergonhado, ríamos um da cara do outro durante toda a viagem até a minha casa.

     Chegamos. Ali estava a minha casa, o meu adorável e aconchegante cantinho. Parei por uns instantes à entrada do portão e suspirei feliz (estava em casa, ufa...). Já passava da Hora da Ave Maria... O céu era matizado por detalhes dourados numa imensidão cinza severa, onde uma lua prateada, tímida, parecia querer ficar escondida. Entrei em casa, estava com o corpo castigado pela viagem e o espírito ainda excitado pelos últimos acontecimentos. Deixei as bagagens na sala mesmo. Estava ansioso por um relaxante e demorado banho... Aproveitei.

     Exagerados minutos depois, enfiei-me em meu pijaminha favorito (branco de bolinhas azuis). Fui até a cozinha e resolvi fazer um belo e sofisticado lanche. Demonstrando todo meu conhecimento de chef, preparei então um delicioso prato à base de pão de forma com alface, tomate (e o meu segredo, mortadela defumada). Fiz dois... Nossa! Que delícia... Dei à ele o nome de Sanduba Proibido. Para beber, um bom refrigerante de guaraná bem geladinho e com muitas bolhinhas gasosas. Perguntei à mim mesmo:

     - O que diriam as minhas duas filhas adoráveis se estivessem aqui, assistindo a este momento de criatividade de seu paizinho?

     Sorri saudoso, mas conformado, pois não ia demorar muito, logo elas estariam aqui de volta. Tinham ido passar uns dias na fazenda de uma amiga para assistir ao lançamento de mais um livro maravilhoso dela.

     Ali, na paz de minha cozinha, eu ia apreciando a minha criação e refletindo sobre a minha viagem... Foram praticamente dois dias. Nunca havia feito um passeio tão curto, mas, foi tão intenso, foram tantas coisas que vivi, tantos fatos, e agora aqui estava eu, a um passo de já partir para uma nova viagem. Só que agora iria em companhia de minhas filhas. Apesar do cansaço, eu adoro viajar para vários destinos durante minhas férias. É gratificante!

     Quando percebi já estava a algum tempo ali, pensativo na companhia das migalhas dos sandubas no prato e de um gole do refrigerante no copo. Decidi me preparar para um bom sono repousante e assim fiz. Algum tempo depois, acordei angustiado com uma dor aguda. Era uma terrível queimação no estômago com um gosto insuportável de guarda-chuva velho na boca (e olha que nunca experimentei comer um, rsrsrs), pensei:

     - Que coisa... Deve ter sido aquele copinho de água que bebi antes de dormir que me fez mal.

     Apressei-me em tomar um antiácido. Melhorei, mas, perdi o sono. Já passava do meio da madrugada quando resolvi reorganizar as malas. Foi quando então encontrei o recibo da Pousada da Vó Nirma e o tal papelzinho cor de rosa que ela havia me entregue com tanto carinho. Curioso, comecei a ler o que nele estava escrito. Vi que se tratava de uma receita. Surpreso, fui lendo com atenção, linha após linha. Era assim:                                                                          

Ingredientes:

500 gramas de Farinha de Trigo

50 gramas de Fermento

100 gramas de Margarina

2 ovos de galinha

100 gramas de açúcar

Essência de Baunilha a gosto

½ copo de água

Faça assim:

     Fazer uma esponja com 50 gramas da farinha de trigo, o fermento e um pouco da água. Deixe repousar por uns 15 minutinhos. Após este descanso adicione os demais ingredientes. Trabalhe esta mistura (com as mãos) até conseguir uma massa macia, lisa, bem homogênea. Deixe esta massa crescer durante uns dez minutos. Passado este tempo modele em bolinhas de umas 30 gramas cada. Coloque em uma assadeira levemente untada com margarina. Cubra com um pano e deixe dobrar de tamanho. Agora é só fritar em óleo não muito quente (para não queimar).

     Fica delicioso se cortá-los ao meio depois de fritos e rechear com geléia de fruta ou mesmo com um creme docinho de seu gosto.

     Ao terminar estava com que em transe, hipnotizado mesmo... Pois aquela receita que havia terminado de ler era a mais fiel receita de Sonho Doce da minha querida avó... De domínio único de nossa família. É mesmo a mais fantástica receita de sonho que eu, infelizmente, no meio de muitas mudanças de endereço por este mundo, havia perdido. Isto me entristecia. Agora ela está de volta para mim... Que alegria! Curioso que sou, pensei:

     - Como é possível? Por que só agora? Como ela sabia? Afinal... Quem é você Vó Nirma?

     Em meio a tantos questionamentos, eu me lembrei da promessa feita a mim mesmo, lá na pousada e estava disposto a cumpri-la. Tão feliz me encontrava, que resolvi que deste dia em diante iria compartilhar esta receita de família com todos os amigos interessados (será minha homenagem à Vó Nirma). A queimação no estômago havia sumido, um soninho preguiçoso me convidava, começava a cochilar. A campainha da porta tocou. Seu toque era suave, mas eficiente. Tocavam e uma voz desesperada gritava para que eu atendesse. Rápido, parti para ver o que acontecia. Não havia ninguém à porta. Percebi então que tal barulheira vinha lá do lado de meu quarto. Voltei e vi que era apenas meu celular me chamando. Havia me esquecido do novo toque que era presente de uma de minhas filhas. Atendi. Eram elas, para me dizer que estavam bem e que estaríamos juntos no final da tarde. Trocamos mais algumas boas palavras, combinamos a nossa futura viagem e nos despedimos.

     Animado com a próxima viagem (É sempre muito bom viajar com minhas filhas... São dignas e muito animadas. Formamos um trio muito esperto, imbatível na arte de viajar), resolvi de uma vez por todas encerrar minhas dúvidas e aceitar os fatos ocorridos em minha viagem solitária como um presente do destino.

     Decidi ir à Rodoviária comprar as nossas passagens. Consegui comprar nossas poltronas favoritas. Tudo corria muito bem até passar pelo ponto onde havia embarcado para ir para Sereno, a Cidade do Sereno. Arrisquei uma olhada e vi apenas um enorme, moderno e luxuoso ônibus, com um vistoso letreiro eletrônico onde se lia Sereno. Curioso, me aproximei, vi seu motorista (um senhor já de certa idade, elegante e com um uniforme impecável) ao lado da porta da bela e imponente condução, fui até ele e perguntei:

     - Como está a adorável cidadezinha de Sereno, amigo?

     Ele me olhou como se estivesse vendo um alienígena e disse:

     - Cidadezinha... Faz muito tempo que aquilo lá é uma cidade grande e tumultuada. Nem o sereno aguentou ficar por lá, bota anos nisto... O senhor está por fora...

     E completou, dizendo:

     - Não posso conversar agora... Tenho que correr para o mictório.

     Saí da rodoviária meio zonzo. Queria apenas chegar em casa, aguardar as minhas filhas, descansar um pouco e logo partir para nossa viagem de férias. Eu estou mesmo precisando.


     Autor: Paulo Renato Lettiere Corrêa (Paulo Lettiere)

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