quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Missão Cumprida

     Missão Cumprida


     Lá pelos dias dos anos 50, uma cidadezinha do interior do país vivia do cultivo da cana-de-açúcar e de algumas propriedades agropecuárias. Era uma localidade bucólica, pacata, cheirando a orvalho e terra gentil. Todos ali eram amigos, de vida simples, viviam conformados com sua felicidade cotidiana e assim dividiam seu tempo entre o trabalho, quermesses religiosas e casamentos dos filhos das famílias locais (que sempre eram motivo de animadas festas). Além de sempre aproveitarem uma folga para se reunirem nas cachoeiras belíssimas do lugar, fazendo delas seu lugar de lazer (aquelas pessoas mereciam, pois todas eram por tradição honestas e trabalhadoras).

     Pois bem, nessa localidade de paz as horas eram longas, onde até o céu límpido e azul, o sol de ouro, forte e imponente, as chuvaradas com seus gritos valentes dos trovões e suas agitadas ventanias, as noites estreladas e calmas e até mesmo as noites escuras e profundas conviviam em perfeita paz e harmonia. Um dia porém viu com imensa tristeza, a ameaça do mal turvar os olhos e as almas daquela gente. Aquele lugar nunca tivera registro de ocorrência grave, apenas as desavenças entre amigos nas bebedeiras de final de semana (que nem chegavam a registro e já estavam resolvidas). Porém certa vez o delegado e seu batalhão de soldados (eram dois) apavorados tomaram conhecimento de que um meliante, vindo Deus sabe lá de onde, estava espalhando terror e tristeza entre os habitantes. Havia o tal desconhecido atacado uma casinha humilde, agredido violentamente um casal de velhinhos que lá morava, roubado pertences e sumido misteriosamente. Para o local do crime partiu o delegado e seu batalhão por uma estrada de chão, iam rápido, o delegado em sua bicicleta e os dois do batalhão a pé tentando acompanhar o seu comandante.

     Após horas de caminhada chegaram ao local, exaustos e dando graças a Deus por não terem dado de cara com o tal monstro criminoso pelo caminho, entraram na casa e depararam com uma cena que marcaria para sempre suas vidas, numa salinha (que era sala, quarto e cozinha) estava o velhinho de joelhos ao lado de uma cama velando solitariamente o corpo de sua eterna companheira, que não resistiu aos ferimentos causados pelo ataque violento do tal ladrão e morreu. Num outro canto da sala estava um cachorrinho sarnento que não parava de chorar pela morte de sua amiga.

     Sem poder dizer uma só palavra, impotentes diante da tragédia, apenas rezaram pela alma daquela velhinha (que mesmo sem vida continuava a ser um amor), depois, ajudaram a sepultar o corpo num pedacinho de chão, ali mesmo (tal cidadezinha tinha este costume, pois nem cemitério tinha), aquele momento de profunda dor e tristeza foi subitamente quebrado pelo urro terrível de um raio que rasgou o céu de nuvens pesadas e negras que resolveu chorar sobre a cidade um lamento nunca visto, parecia até que a Mãe Natureza queria lavar o lugar, livrar sua cidadezinha daquele Mal que insistia em atormentar seus filhos amados (Talvez estivesse ela, em sua sabedoria, prevendo os dias de tormenta que se seguiriam). No casebre do velhinho, aguardaram por horas a tempestade acalmar, partiram dali no final do dia seguinte, sob um vento gelado, por uma estrada lamacenta que margeava um rio agora nervoso e inconformado que parecia querer levar embora as marcas dos últimos acontecimentos. Com os espíritos em luto e os corpos exaustos, lá iam nossos amigos em uma caminhada que parecia não ter fim, buscando a cidade, agora estranhamente sob um véu de nuvens cinzentas e tristes.

     Deixando o velhinho em casa de amigos, voltaram os policiais à delegacia, onde os comentários já eram fortes, o tal monstro tinha aprontado novamente, em outro ponto da cidade. Num trecho deserto o tal sujeito atacou um tropeiro, o esfaqueou, roubou suas mercadorias e matou a golpes de facão os três animais da tropa. Indignado o delegado resolveu conversar com o tropeiro ferido (que só sobreviveu porque se fingiu de morto) e ficou sabendo que o tal meliante era um rapaz alto, muito forte e dono de uma frieza de dar medo só de ver.

     A população, ferida, indignada e revoltada se juntou ao delegado para a caça ao monstro (era como passaram a chamar o criminoso). Porém nada encontraram, mais uma morte ocorreu, uma jovem mãe foi atacada e morta em sua casa juntamente com seu filhinho de cinco meses, enquanto seu marido cuidava da lida da roça.

     O desespero da população e a revolta daqueles policiais que se empenhavam ao máximo mas não conseguiam prender o tal sujeito iam aumentando com o passar dos dias. Cada dia mais aquele lugar (mesmo que fosse lindo) ia se turvando, seguiam-se dias de pavor e insegurança, pois o tal monstro não cessava seus ataques, sempre agindo em pontos diferentes da cidade. Por causa destas atitudes o apelidaram de “Preá” (um roedor dos campos, do tamanho de uma ratazana, que tem grande facilidade de ir de um local a outro rapidamente).

     De repente alguém grita na frente da delegacia:

     -O “Preá” foi visto aqui perto tomando banho no riacho!!!

     Pronto! Logo o delegado e seu valente batalhão (entre dois policiais e os populares enfurecidos agora eram mais de cinquenta) chegaram de mansinho e cercaram o riacho. Lá estava o tal sujeito, tranquilo a nadar com a frieza com que fora descrito. Quando viu que estava cercado nada fez, recebeu voz de prisão e apenas esboçou um sorriso satânico e gélido (a mais terrível expressão do mal que aquelas pessoas já haviam visto). O delegado a contra gosto teve ainda o trabalho de impedir que o “Preá” fosse ali mesmo julgado e morto (era o que merecia), mas o homem da Lei esclareceu os amigos, moradores dignos, e pessoas de bem a respeito dos procedimentos legais a serem seguidos. Amarrado com fortes cordas, algemado nos pés e nas mãos foi o “Preá” levado para a delegacia e colocado numa segura cela.

     No meio da madrugada, um dos soldados de plantão resolveu dar uma conferida na cela, o que viu o deixou aterrorizado: no centro da cela estavam apenas as cordas e as algemas, mais nada. Uma sensação horrível de presença do mal tomou conta daquele lugar e o soldado quase que em desespero relatou o fato ao delegado e à população.

     Começaram a achar que o tal “Preá” era muito astuto, outros começaram a dizer que ele não era humano, o pânico não parava de aumentar, os ataques continuavam cada vez mais violentos, a polícia não conseguia reforços oficiais, o Padre e a Igreja (Tão presentes e atuantes nas festas) agora se omitiam e se acovardavam, dizendo apenas em negligentes e hipócritas sermões que tudo é desígnio de Deus (O que já começava a abalar a fé até dos seguidores mais fervorosos). As pessoas tentavam ajudar em vão. Com tristeza esse amigo e dedicado Delegado, percebeu o abandono Oficial em que ele, a população e seu valente Batalhão se encontravam, pois seus princípios Legais (dos quais sempre se orgulhou) já não estavam ajudando a proteger seu Povo. Sentindo-se incapaz, na solidão de seu gabinete na Delegacia, pela primeira vez em sua vida Oficial, chorou (um choro trágico, de um respeitável Homem). E no meio desta tormenta que atingiu a paz e segurança deste lugar, a vida tinha que continuar, os adultos cumprindo suas tarefas cotidianas, as crianças (para pavor de suas famílias) tinham que continuar e enfrentar sozinhas quilômetros na ida e na vinda entre a escola e suas casas. As notícias sobre as atrocidades não paravam e a vida também não.

     Por conselho da polícia, das famílias e dos amigos, os alunos passaram a andar em grupos, mas os colegas iam ficando em suas casas pelo meio do caminho, e o último deles ficava sozinho.

     Em sua caminhada, Pedrinho (Apenas acompanhado por seus sonhos, seu vira-lata Boliche e pela sua inseparável foice muito bem afiada) voltava para casa assoviando uma moda sertaneja (vale dizer que Pedrinho mesmo com apenas seus nove anos de vida, era um verdadeiro cidadãozinho, alegre, amigo de todos, responsável e valente) pois bem, naquela estrada deserta no meio do nada, lá ia ele, com seus apressados passos. Já eram quase seis horas da tarde quando num trecho da estrada, numa curva medonhamente deserta, aconteceu... surgiu na frente do pequenino Pedrinho, o Preá, aterrador, enorme... frio, monstruoso e ameaçador. Um golpe rápido, inesperado e preciso corta o ar e separa da cabeça o corpo que cai violentamente no chão, a cabeça, com a firmeza do golpe rola pela estrada empoeirada (agora já é uma cabeça sem aquela expressão do mal, apenas a cara de um imbecil assustado e morto, o Preá).

     Seguiu então rumo ao seu lar, assoviando uma marcha fúnebre, orgulhoso de sua foice afiada (Presente de seu amado Pai) com a certeza de que cumpriu mais uma missão e embora já passasse das seis da tarde, o céu de flamboyant, formava agora um colorido emocionante e alegre com a Luz dourada do Sol iluminando Pedrinho e toda a cidadezinha. E lá bem adiante, a Mata e o Rio se uniram formando um belo sorriso de colorido Arco Íris sobre o lugar amado. Enfim, a tal cidadezinha do interior, satisfeita, voltou a viver em paz e harmonia, como nunca deveria ter deixado de viver.


     Autor: Paulo Renato Lettiere Corrêa (Paulo Lettiere)

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