quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A Repartição

     A Repartição


     Os fatos aqui relatados poderiam ser apenas acontecimentos comuns, isolados, típicos da vida monótona, sem graça e fria de uma Repartição Pública. Porém se olharmos com um olhar mais aguçado, veremos o exercício de paciência e convivência do dia a dia de quem vive neste inferno burocrático, em meio a um emaranhado de Leis e Regulamentos que mudam a cada instante, contradizendo-se e atormentando quem tenta decifrá-los buscando o auxílio de seus desorientados Superiores Funcionais que quase sempre nem sabem como chegaram a ocupar tais cargos, nem o que fazem naquele Serviço.

     Como se não bastasse tudo isso, ainda tem o Público, com suas limitações, só querendo resolver os seus problemas de qualquer maneira (e que muitas vezes, desnorteados, nem estão na Repartição certa), criando Leis absurdas, imaginando Direitos que mais parecem alucinações, produto de mentes doentias tentando com suas conversas estranhas uma única coisa, sobreviver à custa dos outros. Sem dúvida existem as pessoas de Bem, simples ou mais esclarecidas, informadas e educadas, que buscam estas Repartições, são pessoas assim que merecem todo o respeito da Sociedade e principalmente das Autoridades (infelizmente estas são uma minoria).

     Pois bem, é com a Alma e o Olhar, de quem por boas três décadas, está neste cenário e fazendo parte dessa rotina, que nosso amigo “O Funcionário”, que já tantos fatos vivenciou, um dia voltando para seu lar, depois de horas e horas de trabalho, chegando em sua casa simples, seu adorável lar, lê um bilhete carinhoso deixado por suas filhas (que não resistiram àquele friozinho convidativo e adormeceram em paz), toma um demorado banho quente, prepara um delicioso café com uns pãezinhos na chapa (na manteiga e bem crocantes), coloca a sua bandeja de lanche sobre a mesa da aconchegante sala e confortavelmente instalado olha ao redor, para aquela tranquilidade e segurança, enquanto aquele frio agradável insiste em acariciar o seu corpo protegido por um delicioso roupão.

     Ele vê as cortinas balançarem levemente com a brisa que teima em entrar na casa através das vidraças semifechadas, enquanto lá fora chove pesadamente. Suspira pensativo e lentamente se delicia com seu lanche (feliz, sente-se saboreando um lanchinho digno dos melhores Chefs), espreguiça-se gostosamente e fala consigo:

     “Esta noite está até parecendo uma daquelas noites de minha infância lá no interior, quando a gente se reunia na sala para ouvir nosso avô contando suas estórias!”

     Saudoso dá mais uma olhada no ambiente, fixa seu olhar no computador sobre a mesinha no cantinho da sala e decide:

     “Hoje quem vai contar estórias sou eu!”

     Animado, liga um CD de Chopin (a meio volume), senta-se em frente ao computador e estalando os dedos ansiosamente diz sorrindo:

     “Hoje este grande escritor aqui vai arrasar!”

     Escolhe escrever sobre os fatos curiosos ocorridos em seu local de trabalho, situações surpreendentes e interessantes! Lembrou daquele dia em que...

     ***

     Foi atender uma velhinha, bem pouco humorada, com seus fortes traços de beata. Tudo corria bem no atendimento, a idosa agitada, mascando a própria língua com seus poucos dentes repetia compulsivamente que queria seus direitos. Em certo momento nosso amigo (experiente e calmo), pergunta à velhinha:

     “A Senhora tem PIS? Deixe-me ver os seus documentos. Já trabalhou fora?”

     Para horror de nosso amigo e de todos os presentes, a velhinha com um salto levanta-se da cadeira, agitando sua bengala de madeira, com os olhos esbugalhados e com seus gritos indignados, berra:

     “Seu sem vergonha, fique sabendo que eu sou uma mulher direita, nunca me deitei com ninguém, sou virgem, nunca tive filhos! Trabalho sim para meu Jesus (que está nos céus). Se eu sou de fora ou não, não é problema do senhor, seu abusado!!!”

     E colocando-se de joelhos, desata a tremer e a chorar numa reza enlouquecida que só terminou com a chegada do Corpo de Bombeiros (segundo ela gritava eram os anjos, bonitões, do Apocalipse).

     Ufa...

     ***

     Em uma outra ocasião, ocorreu um fato muito estranho à compreensão humana. No meio de uma tarde, todos estavam bem tranquilos, ocupados em suas tarefas, o público aguardava o atendimento ordenadamente, sem problema algum. Contrariando toda essa paz havia somente a agitação neurótica de uma das Supervisoras de Serviço (uma daquelas que nada sabem e se sentem sabichonas). Meio loira, meio ruiva, coroa com mania de modelo e com seus devaneios de ter morado na Alemanha (nunca saiu da cidade onde nasceu e mora, quanto mais do Brasil).

     Pois bem, a criatura, alta, um tanto fora de forma, com uma mania horripilante de ficar retorcendo os lábios (enrugados e tingidos de rubro fatal), nervosamente não parava, ia de uma mesa a outra, infernizando a todos com sua incompetência administrativa. Subitamente ao passar próxima à mesa que ocupava, esta esbaforida, com suas sandálias de saltos exagerados, torce o pé, vai ao chão ruidosamente numa queda preocupante e fica estirada como que sem sentidos. Num impulso levanta-se nosso amigo funcionário e oferece ajuda à colega caída, estende a mão, mas, para surpresa de todos (e decepção dele, que por princípios sempre foi orientado a ajudar a quem necessitar) ela olha para ele com olhos enraivecidos e aos berros rejeita seu apoio dizendo:

     “Não se aproxime, não me toque e não me olhe, saia de perto de mim! As tropas de Hitler me salvarão! Suma daqui!!!”

     Os outros colegas custaram convencê-la a aceitar ajuda deles.

     Questionada depois pela Chefia, sobre o tombo e sua atitude, ela retorcendo os lábios e com os olhos frenéticos, falou:

     “Que tombo? Eu?!”

     ***

     Nesta Repartição em que trabalha nosso amigo, existe um esforço muito ativo por parte de todos para se preservar uma prestação de serviços de Excelência, pois bem, na tentativa de mostrar este empenho aos usuários dos serviços, muita coisa se faz. Então resolveu a Repartição, colocar em pontos estratégicos das Agências (nos salões de atendimento) uns cartazes retratando em tamanho natural um funcionário com um largo sorriso nos lábios exibindo uma lista de serviços oferecidos ao Público... ficou o tal cartaz muito bem feito (muito real). Certo dia estavam todos ocupados com suas tarefas, quando de repente em um canto do salão (onde o Público aguarda o atendimento) começou uma gritaria.

     Um cidadão, baixinho, de cabelos ruivos, com enormes dentes projetados para fora da boca e usando uns óculos de lentes redondas e enormes (absurdamente grossas) aos berros demonstrava toda sua fúria e indignação, gesticulava e gritava contra o País, contra o governo, contra a sociedade, enfim contra todos. Estava revoltado principalmente com aqueles que permitiam que funcionários como “aquele ali” em frente a ele trabalhassem no serviço público.

     Berrava o apoplético cidadão que aquele funcionário não lhe dava a menor atenção, nem olhava direito para ele, ficava apenas com aquele olhar superior e aquele sorriso irônico, um sujeito debochado e inútil a ganhar alto salário, pago pelo dinheiro público.

     Todos ali estavam assustados e sem entender direito o que estava acontecendo, então uma Assistente Social se aproximou do irado cidadão e com muita habilidade convenceu o tal sujeito a ir para sua sala, dizendo:

     “Pode deixar, eu vou atender o Senhor...”

     Retirando-o enfim da frente do tal cartaz que insistia em ficar sorrindo solicitamente com sua lista de serviços na mão. Coitado, dias depois o tal cartaz foi exonerado a Bem do Serviço Público (nem teve chance de se defender das acusações daquele louco que não enxerga um palmo diante do próprio nariz)!

     ***

     ...Nosso amigo já estava imaginando contar umas estórias também sobre Júlia (uma funcionária “caipiranha” recém chegada ao setor público) que gostava de se dizer a mais bela, mais competente e mais tudo. Mas que era conhecida por viver numa eterna “pindura” financeira e por sua mania de festas, por qualquer motivo lá vinha ela fazendo vaquinha para promover festas no serviço (diziam até que era para ela e sua filha Mary, de quatro aninhos e sem pai, terem o que comer).

     Neste momento porém o nosso amigo escritor ouviu de súbito um urro medonho, era o aviso do antivírus de sua máquina alertando que uma ameaça grave estava tentando invadir seu computador. Salvou seus arquivos com segurança, adotou medidas preventivas de proteção ao sistema e pensou:

     “Já escrevi muito e muito bem!” (era convencido, o danado)

     “Está na hora de ir dormir em minha cama quentinha!”

     Assim, já estava se deitando quando outro som sacudiu sua casa. Deu um salto e logo descobriu que se tratava do seu rádio despertador que o acordava todas as manhãs, de segunda à sexta-feira, tocando um Rock pauleira absurdamente alto, avisando que era hora de ir para o batente.

     Pronto! Revoltado, começou a correria, tomou um banho rápido, fez a barba às pressas, tomou um gole do café da noite, pegou sua pasta de serviço, abriu delicadamente a porta do quarto de suas filhas (tesouros de sua vida) e carinhosamente deu um leve beijo de despedida nas faces delas. Ia saindo do quarto de fininho, quando as filhas com seus olhos sonolentos perguntaram:

     “Pai vai aonde?”

     Ele responde:

     “Ao trabalho, já estou atrasado.”

     As duas filhas então espantadas falam em coro:

     “Mas Pai, hoje é sábado!”

     Então nosso amigo, surpreso, mas feliz e aliviado, agradece a suas filhas e novamente no conforto de seu pijama preferido (branco com bolinhas azuis) joga-se de volta à cama sob um cobertor acolhedor.

     Assim, logo está nosso amigo em sono profundo, embalado apenas pelo som da chuva fria que insiste em cair lá fora e do radinho de cabeceira (em volume bem baixo) em que um animado locutor diz:

     "Alô meus amigos ouvintes!!! No meio desta manhã chuvosa e fria de sexta feira...”


     Autor: Paulo Renato Lettiere Corrêa (Paulo Lettiere)

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