quinta-feira, 3 de setembro de 2020

O Caminho

     O Caminho


     Ao longo da vida, já conheci as mais variadas manifestações da presença do Mal e do Bem. Porém nenhuma foi mais marcante do que a que vou lhes contar (tendo como base acontecimento real, preservando apenas os nomes das pessoas e do local envolvido).

     Em uma determinada época de minha vida (ainda bem jovem), por necessidade de sobrevivência passei a tropear em lombo de um valente burrinho de carga chamado Brilhante, indo a longas distâncias pelo interior do meu estado a vender de birosca em birosca (vendinha) uma aguardente, produzida nos alambiques do meu pai, herança do meu falecido avô paterno. Ao embalo desse meu querido animal, lá ia eu, enquanto buscava o destino do próximo freguês, ia estudando para a próxima prova escolar, ou apenas cantarolando modas de viola, para ajudar a esquecer a distância que me separava do meu lar.

     Apesar da solidão e do cansaço (muitas vezes voltava tarde da noite), sempre me sentia feliz, pois sabia que estava ajudando a minha família, e assim após um bom banho e uma refeição da mamãe, terminava à luz de lampião minhas lições, adormecia sereno para cedinho acordar e ir para a escola (estudava no turno da manhã e trabalhava à tarde).

     Assim ia cumprindo minha missão, em uma rotina que parecia meu destino, conheci várias pessoas boas, às vezes outras nem tanto, passei por lugares inóspitos, outros imensamente prazerosos, de vez em quando parava para contemplar a bela natureza ou simplesmente para descansar ao meu companheiro Brilhante e a mim, conversávamos como amigos (pois era ele o meu verdadeiro amigo, naquelas trilhas de solidão). E logo nos colocávamos novamente a caminhar, ele sonhando com sua aposentadoria e eu com dias melhores.

     E íamos assim vivendo, sonhadores, até que um dia me deparei com fatos que modificaram em mim a noção de Destino, indo muito longe à procura de novos fregueses, já começava a entardecer (por volta das seis horas da tarde, de um dia seis de junho) quando de uma maneira estranha começou a escurecer subitamente, fiquei preocupado pois ainda restava o caminho de volta, porém destemido continuei.

     Neste caminho desconhecido teria que atravessar uma enorme e densa moita de bambu por apenas uma trilha estreita. Mas ao nos aproximar da mesma, meu amigo Brilhante parou e olhou para mim como se quisesse me dizer algo, insisti, mas nada o fez continuar, frustradas todas as tentativas de convencê-lo a seguir, por respeito ao amigo (achando que ele estava exausto) retornamos dali mesmo, não entendo como para retornar ele se mostrava tão disposto (como se estivesse querendo se afastar do local o mais rápido possível).

     Algum tempo depois a caminhada se tornou bem mais tranqüila, então com a cabeça mais fresca comecei a analisar o que acabava de presenciar, aquele cheiro estranho no ar, as varas de bambu gemendo (pensei que pelo vento), aquela única trilha que parecia querer nos forçar a ir a algum lugar, senti um calafrio, já estava tarde da noite quando avistei um velho na beira da estrada que com uma voz calma me falou:

     - Não se assuste! Eu sei quem você é, quero apenas ajudar... Venha!

     Confiantes o seguimos em silêncio (e olha que o Brilhante não gostava de estranhos, mas seguia amistosamente ao lado do velho).

     Ele nos levou a uma cabana simples, mas confortante, extremamente clara (bem iluminada), a paz reinava no local, então, com uma voz tranqüila ele nos contou que ali perto acontecera um fato horrível a anos atrás, uma família estranha foi morar num local rústico, cheio de moitas de bambus e no meio delas fizeram um casebre de péssima aparência e deram ao sítio o nome de Portal do Inferno.

     Esta família nunca se relacionou com ninguém do lugar, seu sítio mais parecia um cemitério abandonado (freqüentado apenas por abutres), e assim permaneceram no lugar por um tempo, nada produziram, amigos não fizeram, seis pessoas sem vida, sem luz, pareciam mais zumbis, até que um dia por volta das seis horas da tarde, se trancaram dentro do casebre e atearam fogo à mesma e enquanto iam sendo consumidos pelas chamas, soltavam gargalhadas que mais pareciam grunhidos satânicos.

     Este lugar é hoje evitado e em perpétuo isolamento, o cheiro de enxofre misteriosamente paira sempre no ar, o bambuzal carbonizado, o gemido do nada, um casebre em ruínas que guarda ainda as marcas de fuligem dos corpos queimados e uma trilha estreita que não se sabe aonde leva, pois todos que se aventuram por ela jamais voltam (unindo seus gritos de pavor ao gemido do vento).

     Agradecido ao amigo Brilhante (que desfrutava do sono dos inocentes), impressionado com a amizade daquele velhinho que nos protegera e alertara sobre o perigo que corremos (apesar de fortes, suas palavras não pretendiam aterrorizar mas sim orientar), entendi que aonde existir o Mal estará o Bem para ajudar os bons, e assim, também adormeci, ao acordar sentia uma paz imensa. Partimos, meu amigo e eu, sob o olhar confortante do velhinho.

     Ao chegar em casa era uma manhã de sábado (não tinha aula), meus pais vieram ao meu encontro, relatei o ocorrido e eles disseram que ficaram preocupados com minha demora, mas foram tranquilizados com uma enorme certeza de que eu estava protegido e bem.

     Os anos passaram mas as palavras de despedida do velhinho nunca mais deixaram meu coração e alma:

     - Vá em paz, meu querido neto!


     Autor: Paulo Renato Lettiere Corrêa (Paulo Lettiere)

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