quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A Receita de um Conto

     A Receita de um Conto


     Andando pelo interior do nosso país, cheguei a uma pacata e simpática cidadezinha de povo gentil e acolhedor, além de ser uma das mais faladas e conhecidas pela qualidade de sua cachaça e culinária (o que despertou em minha alma de Chef grande interesse em conhecê-la).

     Pois bem, cheguei em uma dessas vendinhas admiráveis do interior, que são armazém, açougue, padaria, armarinho, restaurante e até farmácia (tudo isso em um só estabelecimento), esta, do amigo Gafanhoto era muito bem cuidada. Sentei junto a uma mesinha de madeira com duas cadeiras, pedi o prato do dia, costela de boi com agrião e enquanto aguardava, aproximou-se um morador do local, era um caboclo amistoso, aparentava seus sessenta e poucos anos, trazia com ele uma garrafa de boa cachaça e dois copinhos convidativos. Com uma voz rouca e serena cumprimentou-me, pediu licença e sentou-se à minha frente, ocupando a outra cadeira de minha mesa. Olhou-me sorrindo e serviu nos dois copinhos a purinha e com um ar enigmático e desafiador, deslizou um deles em minha direção, entendi o gesto e brindamos a nova amizade tragando de um só gole todo o conteúdo (era adoravelmente gostosa e terrivelmente forte, aguentei firme), ele então, tornou a encher os copinhos e percebendo meu desespero, gentilmente disse:

     - Carma irmão, estas é pra depoi!

     Com seu palavreado regional e matreiro, virou para o garoto que servia as mesas e falou:

     -Custela cum agrão, pra eu também, pur favô.

     Voltou-se para mim e comentou:

     - O Doutô é di fora, mas vi qui é genti boa i sabi o qui é bão, gosta di comê bem i gosta di um “tapa na guela”!

     Algum tempo depois fui saber que ele havia me servido naquele copinho a cachaça mais forte da região, era uma das formas de dar boas vindas às pessoas de fora.

     Agradeci, disse a ele não ser Doutor, apenas um interessado pela cozinha de um modo geral, nossos pedidos chegaram fumegantes, com um colorido e aroma tentador, ali, com aquele caboclo aprendi a enfrentar aquela comida deliciosa. Ensinou ele:

     - Pra cada cinco grafada di cumida, um copinho di cachaça das boa, o úrtimo copinho é sempri oferecido ao Santo.

     E assim fizemos, comendo, bebendo e proseando, sem dúvida um dos melhores almoços da minha vida.

     Afinal saciados em nossa fome e mais amigos do que nunca, comentei que algum dia iria fazer uma costela tão boa como aquela e que também iria aprender fazer uma boa costela no bafo. Ele, animado, deu um vigoroso arroto, pediu-me desculpas e disse:

     -Presti bem atenção, eu vô contá procê a mais deliciosa manêra di fazê uma custela no bafo. Foi num dumingão, fiz pra moçada lá da granja i todo mundo adorô, fui no açogue do Melé, aqui pertim, cumprei umas custela, cum bastanti carni i bem gorda, cumprei um baldim di áio batido i tamém uma forma di alumino bem grandona, aquela do tipo descartávi, roio di papé alumino i firmi prástico (daqueli qui si usa pra pô em vorta da carni no brasêro) i corrí di vorta pra granja.

     E continuou:

     - Eu fiz anssim: Lavei as custela, sequei direitim, passei bastanti sar grosso, tirei o sar demais i passei bastanti cremi di áio nelas, butei uma pimenta vermeia inteira, duas cebola cortada ao meio i uns dois copos americano di vinho tinto seco (meió si véio, quasi venagrano). Embruiei tudo cum umas quatro vorta do papé alumino, depoi enroiei cum três vorta di firmi prástico, pra ficá bem vedadim i pur fim, mais uma ou duas camada di papé alumino, butei o tar embruio im cima dumas pedra di rua qui já estava pegano fogo no brasêro i dexei o marvado lá por quarsi cinco hora. Depoi metí a faca neli para vê si já tava macio i sortano dos osso (cuidado pra não si queimá com o calô qui sai).

     - Óia moço, ficô di lambê os beiço.

     - Pra falá a verdade moço, eu ia inté fazê pra hoji, mas acunteceu entrevêro lá im casa num sabe... eu ontem à tardezinha saí pra cumprá as custela na venda aqui pertim, fiquei proseano cuns amigo, bebeno sociarmente cos colegas, num sabi... quasi mi esqueço da custela, queria cumprá uns quatro quilo, dei um vacilo i saí di lá cum dezoito quilo di custelas.

     - Pra ataiá o causo, seu moço, lá pra duas da madruga cheguei im casa, bêbado, sem um tustão, chêrano a perfumi barato i cum enormi embruio di custelas, i pregunto para minha Dona (que não sei pruquê estava à minha espera muito nervosa): “Será que ocê faz custela no bafo, pra seu amorzinho i os amigo deli qui vem aqui im casa hoji tomá umas branquinha?”

     - Amigo, vô dizê uma coisa, muié da genta, quano não quer ir pra cozinha, é o bicho, óia, ela mi xingô, mi bateu i mi botô pra fora di casa esta noite, não entendi pruquê.

     Eu, amigo que havia me tornado, em tom consolador, assim falei:

     - Mas meu amigo, você apronta todas e ainda não quer que sua mulher fique brava, tome rumo amigo!

     Ele então falou com o olhos cheios de água:

     - Moço, eu amo a minha Dona, nunca faria nada pra magoá ela, o que acunteceu foi o serguinti:

     - Eu só fiquei sem dinhêro pruquê cumprei custela demais. A bebedêra, isto foi pru conta dum custumi nosso dos finá de semana, di í cos amigo tomá umas branquinha despoi di tantos dia di trabaio duro na lavôra. Os amigo iam armoçá lá im casa sim, tomano umas purinha, pruquê eles si oferecêro pra dá uma força no nosso roçado. I o tar chêro de perfumi barato qui causô tanta faladera, foi pru conta di um vidrinho di Arfazema (daqueli qui tem um ramim da tar flô drento) qui eu tinha cumprado pra fazê surpresa pra minha Dona i qui acabô quebrano im uma das minhas muitas quedas à caminho di casa, molhano a minha rôpa com seu conteúdo.

     Aliviado com as explicações e vendo que a alguns minutos uma Dona (era a dele) nos observava timidamente como se quisesse aproximar-se do meu amigo e puxar conversa, pedi a conta do almoço, paguei e despedi-me dele, jurando voltar mais vezes e fui saindo de fininho dizendo a ele (que nem havia se dado conta ainda da presença tão próxima de sua Dona):

     - Fica assim não, note que ela também não poderia adivinhar tudo isto (e na hora da bronca as coisas ficam mais complicadas). Tenha certeza amigo, logo logo ela vem se acertar com você, pois ela também te ama. Mal havia me afastado uns metros, olhei para aquela mesa e vi os dois, sorrindo um para o outro. Aquele belo casal, de mãos juntas sobre a mesa, e unindo os dois, o amor, uma garrafa de purinha e dois copinhos ansiosos.

     Óia, digo, olha, foi a mais gratificante amizade e a melhor receita de Costela no Bafo que já experimentei até hoje. Eu fiz do jeitim, digo, jeitinho que ele me ensinou, ficou maravilhosa!


     Autor: Paulo Renato Lettiere Corrêa (Paulo Lettiere)

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