quinta-feira, 3 de setembro de 2020

U Mano (Apenas uma Estória)

     U Mano (Apenas uma Estória)


     Numa tarde de outono o manto implacável da noite já vinha desenrolando sua seda sobre aquelas montanhas de um verde escuro. Pareciam elas pilares a sustentar um céu que lembra uma enorme criação de um Artista que não se cansa de brincar com cores e formas mostrando a sua genialidade a cada fração do tempo. O sopro do vento era um tanto morno e tentava uma ópera entre as árvores imponentes da região. Lá embaixo espalhava-se um largo vale com sua vegetação orgulhosa e seu rio sinuoso, de corredeiras cristalinas e escandalosas que mais adiante despencavam em espetáculos de rara beleza natural sob os aplausos das folhas que nesta época do ano se aventuram em longos vôos levadas pelo vento amigo. A vida existe em todo canto e a todo momento neste cenário nota-se na família de capivaras que toma banho na margem do rio, na cobra coral que com sua nada discreta veste tenta esconder-se sob folhas secas, no talentoso sabiá com sua melodia afinada e até mesmo na minúscula formiga que passa apressada levando alegre o que conseguiu para alimentar a família.

     Sim, assim é o lugar onde esta estória começa, apenas um lugar adorável como tantos outros lugares adoráveis neste mundão adorável. Olhando com mais carinho este cenário percebemos o sereno da noite se formando delicadamente, trazendo com ele os aromas inesquecíveis do campo, sentimentos e sensações que marcam profundamente nossas almas, forjando em cada um de nós e por cada um de nós a mais nítida certeza que a nossa passagem por este mundo material não é um simples acaso, é sim um grande aprendizado para nossa evolução espiritual.

     Olhando o lugar bem atentamente, lá para o alto da pequena colina bem próxima, coberta com um gramado verdinho e algumas árvores de porte médio acariciadas pela luz já prateada da redonda lua cheia, chama a atenção algo diferente... Uma silhueta que não estava ali a poucos minutos atrás... Lá estava recostada ao tronco de uma das árvores, quieta, imóvel, e, o mais estranho, soltando fumaça pela boca e pelas ventas... Seria uma ilusão? Apenas seria imaginação? Seria possível um espírito errante ou poderia ser até mesmo o mais improvável de toda esta estória, um ser humano.

     Bem, aproximando de mansinho, bem de mansinho, para a Coisa não se assustar e desaparecer, o mistério já vai se esclarecer, afinal aquele vulto se mostra agora uma sombra bem definida. Já era uma visão bem clara, surpreendentemente o que surgiu nas lentes de um olhar curioso foi a imagem de um ser, um ser humano, simples, sossegado, que não dava o menor sinal de ter percebido estar sendo observado. Continuando imóvel, recostado na árvore, trajava vestes humildes, tinha em uma de suas mãos calejadas um fumacento e de cheiro forte e delicioso cigarrinho de palha, no alto da cabeça um enorme chapéu matuto inclinado sobre a face e ao seu lado uma enxada, uma foice e uma cestinha de cipó com uma moringa e uma marmita em alumínio.

     Parecia dormir, mas não dormia, estava mergulhado em matutanças, com olhos fixos ao longe, ao horizonte cinza tingido de raras faíscas douradas. Olhos que por momentos vagavam pelas montanhas, pelo vale, pelo rio (apressado rio) e pela confusa cachoeira, pelos campos do lugar... Olhos que mergulhavam em sonhos e realidades.

     Não era um estranho, também não era um conhecido. De maneira inexplicável, pensamentos, sonhos, realidades e estória foram se fundindo, os sentimentos se tornaram profundos e únicos. Era de fato uma demonstração das forças do Bem, pensamentos que permaneciam fiéis à essência de uma existência a serviço do Amor.

     Aquela presença era levada por matutanças profundas, questionamentos que surgiram sobre teorias por milênios defendidas, como a mais comum de todas... Aquela que diz que somos todos Irmãos. Será mesmo verdade isto? Que família é esta que se agride e se destrói? Que Pai é este que permite tais atitudes, se omite (ou desiste) de continuar ensinando aos seus filhos o Amor? Que Pai tão poderoso é este que prefere entregar seus Filhos mal educados por Ele mesmo, ao seu pior inimigo? Afinal será que somos todos Filhos de uma mesma Família? Com certeza não somos todos Irmãos... Nem uma afirmação precisa existe de que sejam todos Humanos autênticos, livres, ao serviço do Bem, sem os grilhões opressores e escravizadores das verdades mentirosas das religiões, seitas ou credos (Com seus líderes hipócritas e seus seguidores idiotas, num circo de fanatismo e irracionalidade). No meio deste turbilhão de fatos e pensamentos justo é ressaltar a pequena parcela de Manos que se amam e se respeitam (Afinal amigo que é amigo, é assim, ajuda nas decisões e respeita as opções do outro, sem imposições). São Pais, Mães, Irmãos e Amigos em uma União assumida e sincera por toda Eternidade.

     A maratona de sonhos, realidades, lembranças, esperanças, enfim, de matutança, foi suspensa delicadamente por um uivo do lobo-guará na mata próxima. O amigo sereno e silencioso caminhava agora em meio à neblina que predominava no lugar, em direção à uma tênue luz (deveria ser lá sua moradia) e desapareceu tão misterioso quanto surgiu.

     Uma certeza para poucos, U Mano existe (no dizer das palavras simples de um amigo do interior). Para a maioria é apenas uma Estória (Infeliz maioria, não aprende nunca).


     Autor: Paulo Renato Lettiere Corrêa (Paulo Lettiere)

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