quinta-feira, 3 de setembro de 2020

A Viagem da Noiva

     A Viagem da Noiva


     Esses são acontecimentos ocorridos nos distantes meados do ano de 1968 e nunca esquecidos por mim e que voltam de uma forma mais clara para incentivar a minha memória como se fosse um apelo para que eu conte esta história a todos que queiram ler e entender.

     Tais acontecimentos, ocorreram nos campos de minha infância e poucos ficaram sabendo e menos ainda devem ser lembrar do assunto.

     Quando menino, morava na fazenda de meus pais. Ela era de porte médio, ao pé de uma imponente montanha. Tinha enormes talhões de florestas intocáveis, rios e cachoeiras de águas virgens e escandalosas, uma bela casa e bem uma meia dúzia de pequenas outras semeadas pelos recantos da propriedade (eram casas dos agregados da fazenda). Havia ainda um bom campo de pastagem para serventia de alguns cavalos e algumas vaquinhas de leite. No que restava do grande espaço era tudo formado por um imenso canavial... A atividade canavieira já era o grande negócio da região.

     Ali famílias viviam alegres. Trabalhavam muito sim, mas felizes. Entre as fazendas da região já se podia ver nascer uma vila. Era ainda bem simples... Uns poucos armazéns, uma farmacinha... No meio de uma praça simples e de formas irregulares havia uma igrejinha para as missas de domingo (com seu padre velho e totalmente surdo que na hipocrisia religiosa fingia que ouvia as confissões, para Deus fingir que perdoava as fofocas daquele povo alcoviteiro). Tinha até uma modesta e respeitada delegacia policial... Era assim: Um delegado, dois soldados e umas poucas queixas de amigos que enchiam a cara e brigavam nos botecos.

     Tinha ainda uma escolinha e também uma orgulhosa estação de trem bem ao estilo inglês e muito movimentada (afinal eram dois horários de trem, um às quatro da madrugada, quando ia, e outro às quatro da tarde, quando voltava... Affffff... era muita correria). O trem vinha de longe e parava por apenas um momento para embarque e desembarque dos passageiros ou de cargas... Eu me lembro bem, tal ferrovia cortava toda região, serpenteava em meio ao intermináveis canaviais, cruzava grandes e pequenas pontes, maculando a pureza dos lugares por onde passava, com o imenso fumo cinzento e pesado deixado pela vigorosa Maria Fumaça que sempre levava ou trazia algo ou alguém em nome do suspeito progresso.

     E assim, naquele lugar pacato, junto com aquele vilarejo bucólico, a gente vivia uma rotina que fazia parecer que o tempo ali passava mais devagar que em qualquer outro lugar. Para alguns isto era um privilégio, já para outros, angustiante. Mas de um modo ou de outro, todos se entendiam e procuravam se adaptar ao lugar, afinal de contas, tinha ele seus atrativos.

     A minha rotina era dormir cedo, acordar cedo, tomar um banho frio para espantar o sono, tomar um caneco de escaldante e delicioso café com pão de milho, me arrumar às pressas e ir afobado na minha bicicleta para a tal escola que ficava lá na vila a bons quilômetros de distância. Ia pensando... Tenho que chegar antes de fechar o portão, afinal um garotinho sem estudos não é nada. Sempre cheguei na hora certa. Depois de horas de estudo, saía da escola e passava no armazém do narigudo turco Sessim. Lá vendia-se de tudo e o pai ou a mãe sempre pedia para que eu comprasse alguma coisa.

     Eu comprava, o narigudo anotava uns números em um amassado caderno e eu a caminho para casa imaginava... "Este tal de armazém deve dar muito dinheiro... Eu quando for grande vou ter um... Talvez faça até um restaurante junto dele". Chegando em casa, descansava um pouquinho. O almoço era sempre delicioso... Minha mãe era uma cozinheira admirável e eu aprendi com ela a reconhecer os bons pratos. Depois, cuidava das lições de casa, ajudava um pouco na lida da fazenda e bem à tardinha ia com os amigos para um animado futebol no campinho ou para um delicioso banho de cachoeira (tinha uma mansinha), afinal daqui a pouco iria dormir, para amanhã começar tudo de novo (Ufaaaa.....).

     E assim cada um ia vivendo a sua rotina naquele doce lugar (afinal açúcar não faltava ali). Mas como as rotinas foram feitas para serem quebradas, não foi diferente neste lugar... Aconteceu numa madrugada fria e com uma chuvinha gelada que já molhava a região a dias, o dia era seis de agosto, a hora, três e meia, boa parte das pessoas estava se preparando para enfrentar o trabalho. Ouvia-se ainda ao longe o apito do trem batizado de Noturno, que vinha rasgando as distâncias (máquina e maquinista eram orgulhosos de nunca se atrasarem, parecia uma herança britânica).

     Logo chegou à estação a poderosa, sedenta e demonstrando todo seu vigoroso calor locomotiva animada. Bebeu muita água, recebeu em seus vagões algumas pessoas, deixou umas encomendas, e aos berros anunciou que já estava indo embora. Em meio aos canaviais, sob aquela chuvinha persistente, o Noturno caminhava à meia velocidade mas logo mudou o passo e ia agora rápido rumo à próxima parada a bons quilômetros dali (afinal não se atrasavam nunca). A tal chuvinha também aumentava, agora era um verdadeiro dilúvio que se jogava sobre as regiões em que corria nosso destemido trenzinho (nesta época do ano tais temporais eram comuns na região).

     Enfrentava agora um trecho da estrada cheio de curvas que merecia atenção redobrada, pois existia muita cerração e a chuva dava lugar à uma escuridão cinzenta que o possante farol não conseguia quebrar e alcançar muito longe. O pontual mas prudente maquinista reduziu um pouco a velocidade quando ia se aproximando de uma das curvas mais fechadas do tal trecho. A visibilidade se tornou pior ainda, a chuvarada só aumentou e aí o maquinista atento viu lá adiante, ao alcance da luz do farol, algo no meio dos trilhos. Despejou toda sonora potência do apito da invocada locomotiva... De nada adiantou, a coisa continuava lá.

     Ele pensou: - Deve ser algum cavalo ou vaca... Infelizmente não vai dar para parar em segurança.

     Para seu desespero, ao se aproximar um pouco mais ele viu que não se tratava de um animal e sim de uma jovem, uma jovem vestida de noiva, parada entre os trilhos, olhando determinada para a locomotiva que se aproximava ameaçadora contra ela. Realmente não teria como parar o trem sem causar um grave acidente. O assustado maquinista percebeu então que o trem perdeu subitamente a velocidade, parou suavemente e a vigorosa locomotiva esfriou sua caldeira. Estava a poucos metros da tal jovem.

     Meio assustado, meio revoltado, o maquinista resolveu descer da locomotiva e retirar (mesmo que à força) aquela maluca dos trilhos. Olhando melhor para ela percebeu que mesmo com toda chuva que caía, ela era linda, estava totalmente arrumada, com uma expressão de uma paz desconcertante e que nem uma gota sequer, de toda aquela chuva caiu sobre ela. Estavam, o trem, a jovem e o maquinista, parados em meio à tal curva, os passageiros misteriosamente pareciam dormir, a exemplo do trem. Ao tentar se aproximar da noiva, ele viu que ela seguia serenamente na direção em que ia o Noturno.

     O maquinista entendeu que ela queria que ele a seguisse, assim fez, foram os dois no meio de toda chuva e cerração (a visibilidade era péssima). Logo à frente, ao terminar a tal curva, ele se deparou com uma cena que o deixou aterrorizado... Uma enorme ponte sobre um dos mais largos e fundos rios da região não resistiu à força da enchente e desmoronou, restando apenas um imenso e violento mar de águas lamacentas numa correnteza de dar medo.

     Sem entender bem o que tinha acontecido, teve a plena certeza de que se aquela misteriosa jovem não tivesse parado o trem, fatalmente teriam todos mergulhado no abismo da ponte e morrido. Percebeu a jovem ao seu lado, agora com um sorriso de uma amizade indescritível. Quis expressar a sua gratidão, mas, viu que a imagem da jovem foi de forma tranquila se apagando, mesclando-se à cerração e sumindo no ar. Mesmo assim o nosso amigo maquinista agradeceu a bondade daquele ser do Bem.

     Voltou ao local onde ficou o seu trem parado. Estava ansioso para voltar o mais rápido possível à nossa estação, de onde partira. Surpreso viu que sua locomotiva, que havia apagado, agora resolvera sozinha a voltar a bufar seus vapores plenamente, como se estivesse com pressa de sair logo dali. Após comunicar aos passageiros (agora acordados) e sem dar detalhes do ocorrido, retornou à estação de partida.

     Chegando de volta à estação já encontrou uma meia centena de curiosos querendo saber o motivo do retorno do trem. Os passageiros desceram, uns conformados, outros revoltados (cretinos nervosos existem até mesmo nos menores lugares). O maquinista apressou-se em ir à sala do chefe da estação prestar esclarecimentos. Depois, de uma maneira mais informal, comentou com um grupo de moradores locais o ocorrido... Aí sim, querendo desabafar, contou com todos os detalhes o que ocorreu.

     Uns acreditaram, outros acharam que tal maquinista estava fantasiando, mas no meio de toda polêmica, um dos moradores mais antigos da região lembrou a todos de um fato ocorrido não há muito tempo.

     "Jorge e Priscila se conheceram na faculdade numa distante cidade da Europa. Os dois eram filhos de ricos fazendeiros de nossa região... Ela fazia Medicina (sonhava poder salvar vidas), ele fazia Direito (e sonhava ser um advogado justo e promover e proteger a paz e a ordem). Se apaixonaram, todos que os conheciam afirmavam ser um amor para sempre. Brincavam com eles os chamando de Romeu e Julieta Tupiniquins. Os dois se divertiam com isto.

     Pois bem, o tempo passou, eles se formaram profissionalmente e estavam noivos. De volta ao Brasil, moravam e tentavam se estabelecer em uma cidade grande. Uma dia resolveram vir até as fazendas dos pais para acertar os detalhes e confirmar a data de seu casamento. Seria no mês de novembro. Em seu carro os dois pegaram a estrada, viajaram por horas e logo estavam numa estrada de terra na qual por quilômetros andariam até chegar à fazenda dos pais dela. Já era noite e chovia muito, a estradinha virou um lamaçal, e a chuva só fazia aumentar mas seria imprudente parar a viagem ali no meio do nada, com tanta chuva a despencar. Seguiam em frente, as derrapadas, os relâmpagos, os trovões e tanta água faziam a meiga Priscila, tremendo, buscar forças encostando-se no ombro de seu amor, que com habilidade e cautela conduzia o veículo pela estrada difícil e mal iluminada. Os faróis do carro, totalmente cobertos pela lama, já não iluminavam nada, apenas os clarões dos raios mostravam os pontos mais longe na estrada.

     Porém, quando já estavam quase no final da viagem já era quase de madrugada, a chuva e a escuridão eram terríveis. Foi então que ao passarem por uma das muitas curvas do caminho, não perceberam a tempo de parar que a ponte de madeira sobre um dos rios da região havia sido levada pela correnteza. O carro de nosso apaixonado casal mergulhou nas águas cheias e revoltas matando ali dois jovens e muitos sonhos. Os carros e os corpos foram encontrados a alguns metros dali. Entristecidas, as suas famílias tempos depois venderam as propriedades e foram embora. Nunca mais se teve notícias delas."

     Todos os presentes concordaram que os fatos narrados pelo tal morador foram verdade. Alguém lembrou que seria de boa consideração levar ao conhecimento do delegado, a queda da ponte da ferrovia... Afinal, não fazia muito tempo que ele havia chegado a este lugar e assumido a delegacia. Demonstrava ser amigo, firme em suas decisões, embora não fosse de muitos sorrisos (era até um pouco triste) jamais deixava de ser educado e gentil... De vida simples mas que deixava escapar traços de fino trato, morava na Pensão da Dona Clô (que também pouco sabia sobre ele). Nem o nome dele se sabia, todos o tratavam apenas por delegado. Mas ele sabia bem como promover a Paz e proteger a Ordem.

     Foi até a delegacia um grupo de pessoas, procurando pelo delegado, que não estava. No escritório sempre muito organizado, havia apenas um cartão de visita esquecido sobre a escrivaninha. Estava muito manchado (parecia ter mergulhado em água e lama) onde mal se lia Dr. Jorge (Advogado). Foram até a pensão da Dona Clô. Ela apenas informou:

     - Bem cedinho ele veio até mim, acertou as contas e se despediu agradecido. Vi quando ele tomou pelo braço uma linda jovem que o aguardava aqui em frente. Seguiram pela alameda e sumiram em meio à cerração. Estavam muito felizes. Creio que partiram em viagem.

     Os curiosos foram se dispersando. A vidinha do lugar voltaria à sua rotina e os acontecimentos seriam esquecidos.

     Será que conseguiram esquecer...?


     Autor: Paulo Renato Lettiere Corrêa (Paulo Lettiere)

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